(Do blog Acarajé Conservador)
A Espanha tem uma história muito rica e que se formou ao longo dos confrontos entre povos, culturas e religiões. Desde a conversão do rei visigodo Recaredo I, que abdicara o arianismo ingressando na fé católica, a península ibérica, agora unificada religiosamente, ganhara prestígio aos olhos de Roma. Ainda não tendo os graves problemas doutrinais do reino dos francos ou das colônias itálicas nos Balcãs, os reinos da Espanha enfrentaram a maior humilhação quando no território cristão o domínio muçulmano foi consolidado. Entretanto, através das lutas da Reconquista, com a extensão do domínio católico pelas vastas regiões ocupadas pelos mouros, os ibéricos definiram a sua própria história de modo inigualável. Contudo, o que se destaca nesse processo de dominação e expulsão das populações islâmicas é a dualidade entre duas propostas de tratamento. De um lado se encontrava Hernando de Talavera, Arcebispo de Granada e então confessor da Rainha Isabel I, defensor de um processo de evangelização encabeçado por missionários conhecedores da língua e cultura árabes e coroado com conversões espontâneas. Na outra margem estava o Cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, Arcebispo de Toledo e Primaz da Espanha, árduo adepto de uma solução mais radical para o problema dos mouros, isto é, a conversão forçada ao cristianismo.
O Califado Omíada na Espanha atingiu um alto nível
de esplendor intelectual, artístico e cultural. Entretanto, tamanha produção só
ocorreu com o fim do projeto expansionista islâmico. Na Batalha de Poitiers
Carlos Martel destruiu o anseio muçulmano de ultrapassar os Pirineus chegando
até o reino dos francos. Abaixo da Espanha islamizada estava o Califado
Abássida, o responsável pelo destronamento dos Omíadas agora exilados na
península ibérica. Em meio ao ócio de uma vida não mais militarizada os muçulmanos
conseguiram elevar o nível da sua produção intelectual e artística, tornando
Al-Andalus num farol de beleza e sabedoria para todo o mundo.
A expulsão dos mouriscos, ocorrida em 1609 sob a ordem
de Felipe III da Espanha, descendente da Rainha Isabel I, foi o evento
culminante de um longo processo iniciado pelos Reis Católicos para exterminar
toda a influência cultural, religiosa e étnica dos antigos dominadores
muçulmanos. Os mouros que não fugiram para o norte da África quando da queda do
seu último bastião, o Reino de Granada, foram obrigados à conversão em 1502
após a vitória de Jiménez de Cisneros com o seu rápido processo de
cristianização da península. Mas isso não foi suficiente. A expulsão, portanto,
tinha um claro caráter étnico, já que os mouriscos – mouros convertidos – eram
vistos como o grande infortúnio da nação. Depois de anos de atrito entre as
autoridades espanholas e os neo-cristãos, como o último ato, quase como uma
desesperada limpeza étnica, todos os mouriscos são conduzidos aos portos
marítimos e embarcados para o Marrocos.
A expulsão dos mouriscos, contudo, não carregou a mesma
dramaticidade da expulsão dos judeus ocorrida em 1492. Oito anos após a saída
dos israelitas os muçulmanos espanhóis são obrigados à conversão. Entretanto, o
que não é sabido é que antes desta ação definitiva da coroa da Espanha houve
uma complexa discussão, com profundos pressupostos teológicos, entre Hernando
de Talavera e Jiménez Cisneros. O Arcebispo de Granada, talvez por influência
de eruditos religiosos, como Pedro, o Venerável, defendia um processo de
conversão que fosse autêntico e que estivesse pautado na explanação da verdade
e na conquista para Cristo. Séculos antes o Abade de Cluny, Pedro, realizou uma
viagem até a Espanha muçulmana, que então vivia o apogeu do seu domínio, e após
o aprendizado junto aos mestres islâmicos, realizou a primeira tradução do
Corão para o latim. Para ele os muçulmanos deveriam ser atraídos ao
cristianismo "não como nosso povo com frequencia faz, pelas armas, não
pela força, mas pela razão, não pelo ódio, mas pelo amor". Entretanto,
esse método, adotado por Talavera, era lento e pouco visível aos olhos de uma
corte que via os mouros e seus descendentes como manifestações crônicas de uma
Espanha doente.
Quando os Reis Católicos visitaram Granada pela primeira
vez desde a vitória de 1492 encontraram uma cidade cristã, rica em igrejas e em
manifestações religiosas, onde os sinos, tão perseguidos pelos muçulmanos,
repicavam livremente e eram extremamente audíveis. Entretanto, também se
depararam com uma cidade onde as mesquitas perduravam e enchiam todas as
sextas-feiras. Granada era, portanto, até então, uma típica localidade católica
onde os não-cristãos tinham plena liberdade para professarem a sua fé. Contudo,
a contínua presença da fé islâmica incomodava os Reis Católicos e estes,
finalmente, deram vazão aos planos do Arcebispo de Toledo, Jiménez de Cisneros.
Agora os sacerdotes e os pregadores do Primaz da Espanha tomariam a cidade e
apressariam o processo de conversão dos mouros. Pouco tempo após o seu novo
encargo, o prelado espanhol influenciou a elaboração do edito que, em 1502,
definiu que todos os muçulmanos deveriam escolher entre o batismo e o exílio no
norte da África. Dentro da estruturação lógica do argumento usado pelos
soberanos, não havia o enquadramento da conversão forçada, já que fora dada
como alternativa a partida para o Marrocos. Na perspectiva de Cisneros a rápida
“cristianização” dos mouros facilitaria o trabalho de evangelização. Obviamente
há em tal raciocínio uma total inversão da teologia sacramental católica quando
se trata do batismo de adultos com uma consciência formada e livre. Cisneros,
para tal intento, transferiu a teologia batismal de crianças como pressuposto
teológico do seu projeto e, ademais, ao conceber o muçulmano como
intrinsecamente selvagem diminuía o papel da consciência na sua própria
composição antropológica.
A grande dificuldade dos cristãos ibéricos, entretanto,
não estava tão vinculada ao problema religioso. Havia, de modo muito natural
para a época, a desconfiança diante do desconhecido. Judeus, cristãos e
muçulmanos desenvolviam lendas e mitos que buscavam demonizar as outras crenças
e, ademais, concebiam o outro como selvagem e bárbaro. Com a conversão forçada
de judeus e muçulmanos, na busca pela unidade territorial, surgiu uma eterna
desconfiança sobre a sinceridade da fé cristã professada pelos cristãos-novos e
pelos mouriscos. Entretanto, mais do que a insegurança frente à honestidade
religiosa, existia uma forte aversão ao fator cultural. O combate sistemático
da coroa espanhola contra a cultura judaica e principalmente moura exemplifica
a incapacidade dos cristãos da época de conceberem a ideia do cristianismo
ibérico não estar ligado a uma cultura propriamente ibérica. Destarte, ser
católico espanhol era, necessariamente, se incluir dentro do espectro cultural
lícito, isto é, as diversas facetas culturais que compunham a nação, desde
catalã até galega. A busca pela destruição das marcas árabes na vida dos
convertidos e com a consequente castelhanização destes era a forma encontrada
de exorcizar os fantasmas do passado. Para que a transformação fosse mais aguda
a coroa endossou a destruição da identidade mourisca: o idioma árabe foi
proibido e livros nesta língua foram queimados, trajes típicos foram declarados
ilegais e até mesmo os casamentos entre mouriscos deveriam ser celebrados de
portas abertas para que não se duvidasse da ocorrência de uma cerimônia cristã.
Ademais, os mouros convertidos estavam proibidos de portar armas, ainda que
fosse uma faca doméstica – que deveria ter as pontas arredondadas. A crença
prática era de que a “mancha” étnica triunfava diante da graça batismal, uma
concepção extremamente herética para a doutrina católica.
Havia na época um apreço muito grande pela reflexão a
respeito da salvação dos não-cristãos, discussão aprimorada com o descobrimento
da América e dos seus povos nativos desconhecedores da Revelação. Para o
Cardeal Tomás Caetano, infiéis como os muçulmanos estavam sob o domínio
cristão, enquanto os indígenas americanos estavam livres da jurisdição da
Igreja. Esse tipo de raciocínio possibilitou o incremento da ação da Inquisição
contra os mouriscos. Contudo, a situação da Igreja na Espanha era muito
complexa. A instituição eclesiástica, inclusa a Inquisição, era usada como
instrumento do estado. Ademais, num curto espaço de tempo reis espanhóis, como
Carlos V e Felipe II, restringiram os poderes do papado na península ibérica. O
confronto foi agravado com a invasão de Roma pelas tropas de Carlos V e o
consequente saqueamento da Cidade Eterna. Felipe II, ainda sendo um fiel
defensor dos anseios da Igreja na Europa, mostrou-se na Espanha um ardoroso
protetor dos interesses do monarca no campo religioso. A Santa Sé, portanto, não
apoiou a conversão forçada das massas, que ocorreu, assim, à revelia da
autoridade máxima da fé católica.
O choque de Talavera com Cisneros pode ser concebido,
portanto, como a luta entra um propósito sincero de conversão e o uso político
da religião para fins obscuros. O Arcebispo de Granada, grande erudito que
dominava perfeitamente o idioma árabe, por mais ineficiente que parecesse aos
olhos de uma coroa ansiosa pelo fim da presença islâmica na península, não
usava de meios violentos, mas, isto sim, através da persuasão racional e do
testemunho amoroso apresentava o cristianismo aos mouros. Já o Arcebispo de
Toledo, com a conversão forçada dos mouros granadinos e em seguida de todos os
islâmicos em Castela, exterminou, ao menos nominalmente, o islã do reino
cristão, mas não conseguiu transformar os mouriscos em verdadeiros católicos
por mais que sacerdotes e monges entrassem aos montes em suas vilas e bairros.
Com a ineficiência da conversão começou a se fortalecer a tese de que a cultura
moura, ou até mesmo a raça árabe, era a grande responsável pela dificuldade dos
convertidos em abraçar verdadeiramente o cristianismo. Iniciou-se, portanto, um
processo sistemático de destruição cultural e de controle sobre a vida dos
mouriscos.
Os sucessores de Cisneros em suas teses continuaram com
a busca pela cristianização dos já nominalmente cristãos. Tal tensão criara
tamanha desconfiança sobre a sinceridade da fé que até mesmo os que viviam
honestamente a nova crença eram vistos com precaução. Incapazes, portanto, de
tornar todos os descendentes dos mouros em verdadeiros cristãos e
impossibilitados de destruir completamente os resquícios da cultura árabe, a
coroa espanhola resolveu expulsá-los da península ibérica, enviando-os para o
Marrocos, como já havia ocorrido com os judeus séculos antes. A expulsão
ocorreu em 9 de abril de 1609, sob a ordem de Felipe III da Espanha.
Desde a conversão em 1502 até a expulsão em 1609 um
século foi atravessado. O método de Cisneros se mostrou um grande fracasso.
Poucos mouros adotavam sinceramente a fé cristã e ainda mesmo aqueles que o
faziam não abriam mão de sua rica cultura. Começa-se, portanto, o segundo
processo, o de substituição da cultura árabe pela castelhana, o que
intensificara a revolta mourisca contra a coroa. Com a tensão no sul da Espanha
se tornando cada vez mais complexa e, ademais, com o crescente desenvolvimento
de teses que defendiam a ideia de “mancha étnica” indelével, houve-se por bem
banir todos os mouriscos do reino da Espanha.
Certamente Hernando de Talavera, com seu método orgânico
de conversão, ainda que não atingisse a totalidade da população moura, geraria
conversões sinceras que serviriam como testemunhos profundos da vida cristã
junto aos muçulmanos. Entretanto, por mais dinâmica que tenha sido a história
de Al-Andalus e da Reconquista, o que fica claro de modo mais enfático é a
capacidade do homem de produzir, através do seu espírito, monumentos de
eternidade e ações que marcam a sua vida, a dos homens da sua época, mas que
atravessam o tempo e chegam até o homem presente. Não cabe, portanto, um juízo
metódico sobre Cisneros e suas teses fracassadas, entretanto, fica o
aprendizado de que a consciência individual jamais deve ser tolhida na
liberdade que tem de seguir, ainda que seja no seguimento do erro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Palavras de ordem deste formulário de comentários: prudência, educação, honestidade, sinceridade e clareza.