Círculos concêntricos de entes autônomos e interdependentes |
(De Voto Católico)
Consiste em as sociedades maiores, especialmente o Estado, ajudarem e complementarem as atividades dos indivíduos e dos grupos sociais tanto no campo econômico quanto nos demais setores da vida humana.
A sociabilidade humana é um fato: os homens vivem
agrupados. Os grupos sociais, livremente formados, dão origem a uma estrutura
natural da sociedade maior que, na realidade, não é senão uma sociedade de
sociedades: famílias, entidades profissionais, culturais, assistenciais,
artísticas. O inter-relacionamento das sociedades menores e o destas com a
sociedade política fazem desenvolver-se uma dinâmica funcional que implica
definir-lhes devidamente os poderes e competências. Para se chegar a essa
definição há que adotar um critério.
Em pé, José Pedro Galvão de Souza |
Como é inerente ao homem o direito natural de se
associar, daí decorre também um direito próprio dos grupos sociais de se
autorregulamentarem, autorregerem, autoadministrarem para a realização dos seus
fins. Desta forma, a sociedade política, ao se organizar, não só não pode
ignorar como deve respeitar essas autonomias sociais, quando vem a estabelecer
normas e mecanismos adequados a conferir uma unidade de ordem à multivariedade
dos agrupamentos. Ademais, a anterioridade da sociedade em relação ao Estado
também autoriza afirmar a plena autonomia dos poderes sociais. Na verdade, a
sociedade antecede o Estado na ordem histórica e, além disso, deve ser
considerada não como entidade uniforme e indiferenciada, mas como realmente é,
ou seja, uma complexa contextura multigrupal. Quando o Estado surge, precisa
levar em conta essa realidade e organizar-se enquanto entidade modal, ou seja,
um modo de ser da sociedade, com uma estrutura jurídico-político-administrativa
cuja atuação se fará em esfera de competência específica, limitada pelas
competências dos grupos sociais. Configura-se, assim, um princípio de filosofia
social e política que deita raízes na natureza humana (o homem, além de
racional e livre, é um ser social) e na natureza da sociedade (a sociedade é
construída de sociedades): o que os indivíduos podem fazer por iniciativa e
capacidade próprias compete a eles fazer; o que as sociedades menores podem
fazer com meios próprios deve ser feito por elas, sem interferência ou absorção
por parte das sociedades maiores; tanto as sociedades menores, em relação aos
indivíduos, como as sociedades maiores, em relação às sociedades menores, devem
cumprir essa tarefa de ajuda sempre que necessário. Assim é, por força do
princípio de subsidiariedade que deve presidir as ações e interações tanto dos
indivíduos e dos grupos sociais, quanto do Estado em relação a uns e outros.
A importância desse princípio ganha especial relevo
quando aplicado ao exercício da atividade do Estado no tocante a setores em que
a primazia cabe a particulares: o setor econômico, o cultural, o assistencial.
De regra, não incumbe aos poderes públicos atuar diretamente nesses campos, por
escaparem a seus fins específicos. É sua obrigação criar condições para que
essas atividades se desenvolvam da melhor maneira possível. Por isso que o
Estado não deve fazer, embora, às vezes, e em caráter excepcional,
também deva fazer. Por princípio, no entanto, deve tão-só ajudar a
fazer. Trata-se de ajuda (subsidium), em sentido amplo, pois numa
reta ordenação de suas atividades o Estado fovet, excitat, ordinat,
supplet atque complet, fomenta, estimula, coordena, supre e completa ou
integra. Posto numa ordem hierárquica superior, o Estado — sociedade maior
por excelência — exerce uma função subsidiária com vistas a promover o bem
geral mediante providências diversas: dirigir, vigiar, urgir , corrigir,
reprimir. A aplicação do princípio de subsidiariedade traz
consequências importantes. Uma delas é tornar real a limitação do poder do
Estado. Isto não significa que o Estado deva ser reduzido à inação, ou
deva agira somente para suprir deficiências. Ao se lhe tirarem as
possibilidades de incorrer em intervencionismo ou dirigismo, garante-se a
autodeterminação dos indivíduos e dos grupo sociais, valorizando-se efetiva e
concretamente as liberdades. Impede-se, assim, que um processo totalitário se
instale nas estruturas de poder. Este não deixará de atuar, mas ficará adstrito
à própria área de atribuições, por força de uma organização do Estado dimensionada
segundo uma concepção do homem e da sociedade, fundada na ordem natural das
coisas. A atividade subsidiária permitirá ao Estado exercitar uma função
vitalizadora do organismo social, mediante a adoção de medidas apropriadas:
fomento de iniciativas, incentivo de atividades, implementação de condições,
suprimento de carências, correção de deficiências, integração de forças
sociais. Elide-se, desta maneira, o risco de gigantismo, típico do Estado
moderno, cuja faina concentracionária se opera, quer pelas vias democráticas,
quer pelas vias totalitárias.
Também não se perca de vista que se está em face de um
princípio de divisão de competências, pois se trata de um "princípio de
ordem" que discrimina, com fundamento na natureza das coisas, as esferas
de poder das sociedades menores e do Estado, permitindo identificar o âmbito de
ação de cada qual e definir suas relações recíprocas. Deste modo, não só o
Estado tem seus limites de atuação naturalmente assinalados
como também os grupos sociais encontram a delimitação de seu campo de ação ante
o elenco das competências genuínas do Estado, exercidas em área exclusiva. Ter
competência própria para agira — ou seja, realizar os próprios fins com
seus próprios meios — significa garantir a própria autonomia, sem que isto
implique os grupos sociais e o Estado se ignorarem ou se hostilizarem. Mesmo
porque os bens comuns parciais visados pelos grupos sociais não podem
prescindir do bem comum global objetivado pelo Estado a fim de ser alcançado um
desenvolvimento satisfatório e harmônico.
Pelo fato de deter o poder soberano, cuja força e
amplitude são evidentes, o Estado carrega um potencial de expansibilidade que
tende a irromper em setores onde lhe é vedado atuar ordinariamente. Quando essa
expansão decorre de uma filosofia totalizante ou totalitária do poder, só será
corrigível mediante uma reestruturação integral do Estado. No entanto, se se
tratar de desvios programáticos, também eles perigosos, será necessário recolocar
a atividade estatal no seu devido lugar,, vale dizer, o lugar próprio de um
poder soberano. É certo que, situado superiormente, no quadro da sociedade
global, o Estado poderá vir a atuar não apenas no sentido de ajudar no
desenvolvimento das atividades dos indivíduos e dos grupos sociais, mas,
inclusive, mediante ação direta, chegando até mesmo a substituir certa
atividade privada, se isto for absolutamente necessário, devendo, porém,
retrair-se assim que, na área visada, os particulares estiverem habilitados a
agir a contento e sem prejuízo para o bem comum. Não se exclui, pois, a
intervenção, que, todavia, só é admitida excepcionalmente e na justa medida.
Para encontrar essa justa medida, todo um critério prudencial deverá premunir a
decisão e a ação. Diz, a propósito, Marcel de la Bigne de Villeneuce
(1899-1958):
"Os negócios da pessoa devem pertencer à pessoa; os
negócios da família, à família; os negócios da profissão, à profissão; os
negócios da comuna, à comuna; os negócios da região, à região; os negócios da
Nação, ao Estado."
Essa linha de procedimento, ao definir e escalonar as
competências, constitui um critério prévio do qual importa partir, a fim de pôr
cobro a expedientes intervencionistas. Nesse sentido, é preciso considerar que,
especialmente quando a função subsidiária deve ser exercitada com caráter supletivo,
pode emergir grave risco de intervencionismo, ainda que disfarçado em mera
ajuda. Não obstante isso, devem-se considerar situações e,m que a pessoa não
tenha condições de atuar, cabendo a ação a um grupo social. Também,
eventualmente, ocorrerão situações em que a família se veja impossibilitada de
agir, devendo, então, a ação ficar a cargo de um grupo social maior. Essa mesma
ordem de raciocínio se aplica ao município em relação à província, assim como
se aplica à província em relação ao Estado. No tocante ao Estado —
consideradas as três esferas da administração pública — a ação supletiva
se exercerá desde que se verifique, objetivamente, a impossibilidade de atuação
dos particulares por insuficiência, deficiência ou inconveniência, em face dos
ditames do bem comum.
Três hipóteses podem ser destacadas no tocante à ação
supletiva: 1) Sempre que a natureza do empreendimento tiver um caráter público
diretamente dependente da iniciativa do Estado, em razão de sua especificidade,
ou porque o vulto dos recursos exigidos ultrapasse a capacidade
econômico-financeira dos particulares. É o caso das obras de saneamento básico,
da construção de usinas hidrelétricas ou nucleares, etc. 2) Sempre que se
verificarem crises sociais pertinazes, de debelação difícil senão impossível
pelos meios normais, mediante a ação dos grupos sociais autônomos. Por exemplo:
a criação de frentes de trabalho para desempregados, em razão de persistente
período de seca, ou a execução de programa de desfavelamento em que a ajuda se faça
estimulando a iniciativa do favelado, a cooperação dos grupos sociais e a ajuda
dos poderes públicos. 3) Sempre que estiverem em causa os altos interesses
nacionais, em que é obrigatória a ação exclusiva do Estado, a fim de prevenir
lesão irreparável ao bem geral. É o que ocorre com a exploração de certa
categoria de bens, aí interferindo decisivamente questões atinentes à segurança
nacional (como é o caso dos minérios atômicos) ou à independência econômica
(como pode ser o caso do petróleo).
Tudo isso demonstra que o princípio de subsidiariedade
não se situa em plano abstrato. Até pelo contrário, está estreitamente
vinculado à realidade das coisas e às contingências da vida social. Mantém-se
íntegro mesmo quando a intervenção segmentar vem a ocorrer com caráter direto e
exclusivo. Ainda aqui, no entanto, verifica-se ser exigência do bem comum que a
iniciativa não fique com os particulares.
E disso acabarão por se beneficiar os próprios
particulares pelo fato de se impedir que uma parcela deles venha a reunir em
suas mãos tal soma de poderio econômico e, quiçá, também político, suscetível
de comprometer a paz social. Não fosse esta a razão final da intervenção — e
apenas nesses moldes — e não haveria como justificá-la.
Cabe observar ainda que o princípio de subsidiariedade tem aplicação também no plano internacional, como ocorre no concernente às organizações regionais de povos e da comunidade das nações. Tipifica-se igualmente nas alianças militares de defesa, tendo em vista a segurança coletiva de determinadas zonas do globo, quando os povos não podem defender-se apenas com os próprios recursos.
Cabe observar ainda que o princípio de subsidiariedade tem aplicação também no plano internacional, como ocorre no concernente às organizações regionais de povos e da comunidade das nações. Tipifica-se igualmente nas alianças militares de defesa, tendo em vista a segurança coletiva de determinadas zonas do globo, quando os povos não podem defender-se apenas com os próprios recursos.
O princípio de subsidiariedade, implícito nas ideias de muitos autores, desde Aristóteles (384-322 a.C.), encontra-se formulado com bastante clareza na Doutrina Social da Igreja, especialmente na Encíclica Quadragesimo anno (15 de maio de 1931), de Pio XI (Papa, de 1922 a 1939):
“Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje empreender certas tarefas que antes eram feitas pelas pequenas. Permanece, contudo, firme e constante na filosofia social aquele importantíssimo princípio inamovível e imutável: assim como é lícito subtrair aos indivíduos o que eles podem realizar com as próprias forças e indústria, é também uma injustiça, com grave dano e perturbação da reta ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e subalternas podem conseguir. Toda ação da sociedade, por sua própria natureza, deve prestar ajuda (subsidium) aos seus membros, e nunca destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública suprema que as sociedades menores cuidem de seus objetivos próprios, entregando-se ela a desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade o requeiram. Persuadam-se todos os que governam que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, uma vez observado esse princípio da função ‘subsidiária’, tanto mais firme será a autoridade e maior a eficiência social, e tanto mais próspero e feliz o estado da coisa pública.”
O princípio de subsidiariedade, por decorrer da natureza
das coisas, é imutável e universal: vale para todos os tempos e todos os
lugares. E o Estado — existindo para o homem —, ao se estruturar
jurídico-politicamente, sob qualquer regime (à exceção do totalitário, por
razões óbvias), deve levar em conta esse princípio, que assegura uma reta ordenação
da sociedade, e descarta, consequentemente, tanto o individualismo quanto o
coletivismo, com os males que lhes são inerentes.
Dicionário de Política, José Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho; T. A. Queiroz editor, São Paulo, 1998.
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