sábado, 27 de abril de 2013

O Princípio da Subsidiariedade segundo Galvão de Sousa



Círculos concêntricos de entes autônomos e interdependentes

(De Voto Católico)

Consiste em as sociedades maiores, especialmente o Estado, ajudarem e complementarem as atividades dos indivíduos e dos grupos sociais tanto no campo econômico quanto nos demais setores da vida humana.

A sociabilidade humana é um fato: os homens vivem agrupados. Os grupos sociais, livremente formados, dão origem a uma estrutura natural da sociedade maior que, na realidade, não é senão uma sociedade de sociedades: famílias, entidades profissionais, culturais, assistenciais, artísticas. O inter-relacionamento das sociedades menores e o destas com a sociedade política fazem desenvolver-se uma dinâmica funcional que implica definir-lhes devidamente os poderes e competências. Para se chegar a essa definição há que adotar um critério.


Em pé, José Pedro Galvão de Souza

Como é inerente ao homem o direito natural de se associar, daí decorre também um direito próprio dos grupos sociais de se autorregulamentarem, autorregerem, autoadministrarem para a realização dos seus fins. Desta forma, a sociedade política, ao se organizar, não só não pode ignorar como deve respeitar essas autonomias sociais, quando vem a estabelecer normas e mecanismos adequados a conferir uma unidade de ordem à multivariedade dos agrupamentos. Ademais, a anterioridade da sociedade em relação ao Estado também autoriza afirmar a plena autonomia dos poderes sociais. Na verdade, a sociedade antecede o Estado na ordem histórica e, além disso, deve ser considerada não como entidade uniforme e indiferenciada, mas como realmente é, ou seja, uma complexa contextura multigrupal. Quando o Estado surge, precisa levar em conta essa realidade e organizar-se enquanto entidade modal, ou seja, um modo de ser da sociedade, com uma estrutura jurídico-político-administrativa cuja atuação se fará em esfera de competência específica, limitada pelas competências dos grupos sociais. Configura-se, assim, um princípio de filosofia social e política que deita raízes na natureza humana (o homem, além de racional e livre, é um ser social) e na natureza da sociedade (a sociedade é construída de sociedades): o que os indivíduos podem fazer por iniciativa e capacidade próprias compete a eles fazer; o que as sociedades menores podem fazer com meios próprios deve ser feito por elas, sem interferência ou absorção por parte das sociedades maiores; tanto as sociedades menores, em relação aos indivíduos, como as sociedades maiores, em relação às sociedades menores, devem cumprir essa tarefa de ajuda sempre que necessário. Assim é, por força do princípio de subsidiariedade que deve presidir as ações e interações tanto dos indivíduos e dos grupos sociais, quanto do Estado em relação a uns e outros.

A importância desse princípio ganha especial relevo quando aplicado ao exercício da atividade do Estado no tocante a setores em que a primazia cabe a particulares: o setor econômico, o cultural, o assistencial. De regra, não incumbe aos poderes públicos atuar diretamente nesses campos, por escaparem a seus fins específicos. É sua obrigação criar condições para que essas atividades se desenvolvam da melhor maneira possível. Por isso que o Estado não deve fazer, embora, às vezes, e em caráter excepcional, também deva fazer. Por princípio, no entanto, deve tão-só ajudar a fazer. Trata-se de ajuda (subsidium), em sentido amplo, pois numa reta ordenação de suas atividades o Estado fovet, excitat, ordinat, supplet atque complet, fomenta, estimula, coordena, supre e completa ou integra. Posto numa ordem hierárquica superior, o Estado — sociedade maior por excelência — exerce uma função subsidiária com vistas a promover o bem geral mediante providências diversas: dirigir, vigiar, urgir , corrigir, reprimir.  A aplicação do princípio de subsidiariedade traz consequências importantes. Uma delas é tornar real a limitação do poder do Estado. Isto não significa que o Estado deva ser reduzido à inação, ou deva agira somente para suprir deficiências. Ao se lhe tirarem as possibilidades de incorrer em intervencionismo ou dirigismo, garante-se a autodeterminação dos indivíduos e dos grupo sociais, valorizando-se efetiva e concretamente as liberdades. Impede-se, assim, que um processo totalitário se instale nas estruturas de poder. Este não deixará de atuar, mas ficará adstrito à própria área de atribuições, por força de uma organização do Estado dimensionada segundo uma concepção do homem e da sociedade, fundada na ordem natural das coisas. A atividade subsidiária permitirá ao Estado exercitar uma função vitalizadora do organismo social, mediante a adoção de medidas apropriadas: fomento de iniciativas, incentivo de atividades, implementação de condições, suprimento de carências, correção de deficiências, integração de forças sociais. Elide-se, desta maneira, o risco de gigantismo, típico do Estado moderno, cuja faina concentracionária se opera, quer pelas vias democráticas, quer pelas vias totalitárias.
                                          


Também não se perca de vista que se está em face de um princípio de divisão de competências, pois se trata de um "princípio de ordem" que discrimina, com fundamento na natureza das coisas, as esferas de poder das sociedades menores e do Estado, permitindo identificar o âmbito de ação de cada qual e definir suas relações recíprocas. Deste modo, não só o Estado tem seus limites de atuação naturalmente assinalados como também os grupos sociais encontram a delimitação de seu campo de ação ante o elenco das competências genuínas do Estado, exercidas em área exclusiva. Ter competência própria para agira — ou seja, realizar os próprios fins com seus próprios meios — significa garantir a própria autonomia, sem que isto implique os grupos sociais e o Estado se ignorarem ou se hostilizarem. Mesmo porque os bens comuns parciais visados pelos grupos sociais não podem prescindir do bem comum global objetivado pelo Estado a fim de ser alcançado um desenvolvimento satisfatório e harmônico.

Pelo fato de deter o poder soberano, cuja força e amplitude são evidentes, o Estado carrega um potencial de expansibilidade que tende a irromper em setores onde lhe é vedado atuar ordinariamente. Quando essa expansão decorre de uma filosofia totalizante ou totalitária do poder, só será corrigível mediante uma reestruturação integral do Estado. No entanto, se se tratar de desvios programáticos, também eles perigosos, será necessário recolocar a atividade estatal no seu devido lugar,, vale dizer, o lugar próprio de um poder soberano. É certo que, situado superiormente, no quadro da sociedade global, o Estado poderá vir a atuar não apenas no sentido de ajudar no desenvolvimento das atividades dos indivíduos e dos grupos sociais, mas, inclusive, mediante ação direta, chegando até mesmo a substituir certa atividade privada, se isto for absolutamente necessário, devendo, porém, retrair-se assim que, na área visada, os particulares estiverem habilitados a agir a contento e sem prejuízo para o bem comum. Não se exclui, pois, a intervenção, que, todavia, só é admitida excepcionalmente e na justa medida. Para encontrar essa justa medida, todo um critério prudencial deverá premunir a decisão e a ação. Diz, a propósito, Marcel de la Bigne de Villeneuce (1899-1958):

"Os negócios da pessoa devem pertencer à pessoa; os negócios da família, à família; os negócios da profissão, à profissão; os negócios da comuna, à comuna; os negócios da região, à região; os negócios da Nação, ao Estado."
Essa linha de procedimento, ao definir e escalonar as competências, constitui um critério prévio do qual importa partir, a fim de pôr cobro a expedientes intervencionistas. Nesse sentido, é preciso considerar que, especialmente quando a função subsidiária deve ser exercitada com caráter supletivo, pode emergir grave risco de intervencionismo, ainda que disfarçado em mera ajuda. Não obstante isso, devem-se considerar situações e,m que a pessoa não tenha condições de atuar, cabendo a ação a um grupo social. Também, eventualmente, ocorrerão situações em que a família se veja impossibilitada de agir, devendo, então, a ação ficar a cargo de um grupo social maior. Essa mesma ordem de raciocínio se aplica ao município em relação à província, assim como se aplica à província em relação ao Estado. No tocante ao Estado — consideradas as três esferas da administração pública — a ação supletiva se exercerá desde que se verifique, objetivamente, a impossibilidade de atuação dos particulares por insuficiência, deficiência ou inconveniência, em face dos ditames do bem comum.

Três hipóteses podem ser destacadas no tocante à ação supletiva: 1) Sempre que a natureza do empreendimento tiver um caráter público diretamente dependente da iniciativa do Estado, em razão de sua especificidade, ou porque o vulto dos recursos exigidos ultrapasse a capacidade econômico-financeira dos particulares. É o caso das obras de saneamento básico, da construção de usinas hidrelétricas ou nucleares, etc. 2) Sempre que se verificarem crises sociais pertinazes, de debelação difícil senão impossível pelos meios normais, mediante a ação dos grupos sociais autônomos. Por exemplo: a criação de frentes de trabalho para desempregados, em razão de persistente período de seca, ou a execução de programa de desfavelamento em que a ajuda se faça estimulando a iniciativa do favelado, a cooperação dos grupos sociais e a ajuda dos poderes públicos. 3) Sempre que estiverem em causa os altos interesses nacionais, em que é obrigatória a ação exclusiva do Estado, a fim de prevenir lesão irreparável ao bem geral. É o que ocorre com a exploração de certa categoria de bens, aí interferindo decisivamente questões atinentes à segurança nacional (como é o caso dos minérios atômicos) ou à independência econômica (como pode ser o caso do petróleo).

Tudo isso demonstra que o princípio de subsidiariedade não se situa em plano abstrato. Até pelo contrário, está estreitamente vinculado à realidade das coisas e às contingências da vida social. Mantém-se íntegro mesmo quando a intervenção segmentar vem a ocorrer com caráter direto e exclusivo. Ainda aqui, no entanto, verifica-se ser exigência do bem comum que a iniciativa não fique com os particulares.


E disso acabarão por se beneficiar os próprios particulares pelo fato de se impedir que uma parcela deles venha a reunir em suas mãos tal soma de poderio econômico e, quiçá, também político, suscetível de comprometer a paz social. Não fosse esta a razão final da intervenção — e apenas nesses moldes — e não haveria como justificá-la.

Cabe observar ainda que o princípio de subsidiariedade tem aplicação também no plano internacional, como ocorre no concernente às organizações regionais de povos e da comunidade das nações. Tipifica-se igualmente nas alianças militares de defesa, tendo em vista a segurança coletiva de determinadas zonas do globo, quando os povos não podem defender-se apenas com os próprios recursos.

O princípio de subsidiariedade, implícito nas ideias de muitos autores, desde Aristóteles (384-322 a.C.), encontra-se formulado com bastante clareza na Doutrina Social da Igreja, especialmente na Encíclica Quadragesimo anno (15 de maio de 1931), de Pio XI (Papa, de 1922 a 1939):

“Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje empreender certas tarefas que antes eram feitas pelas pequenas. Permanece, contudo, firme e constante na filosofia social aquele importantíssimo princípio inamovível e imutável: assim como é lícito subtrair aos indivíduos o que eles podem realizar com as próprias forças e indústria, é também uma injustiça, com grave dano e perturbação da reta ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e subalternas podem conseguir. Toda ação da sociedade, por sua própria natureza, deve prestar ajuda (subsidium) aos seus membros, e nunca destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública suprema que as sociedades menores cuidem de seus objetivos próprios, entregando-se ela a desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade o requeiram. Persuadam-se todos os que governam que quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as várias agremiações, uma vez observado esse princípio da função ‘subsidiária’, tanto mais firme será a autoridade e maior a eficiência social, e tanto mais próspero e feliz o estado da coisa pública.”

O princípio de subsidiariedade, por decorrer da natureza das coisas, é imutável e universal: vale para todos os tempos e todos os lugares. E o Estado — existindo para o homem —, ao se estruturar jurídico-politicamente, sob qualquer regime (à exceção do totalitário, por razões óbvias), deve levar em conta esse princípio, que assegura uma reta ordenação da sociedade, e descarta, consequentemente, tanto o individualismo quanto o coletivismo, com os males que lhes são inerentes.

Dicionário de Política, José Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho; T. A. Queiroz editor, São Paulo, 1998. 

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