(Do blog do Instituto de Filosofia e Educação Clássica Ser Fundamentos)
Ao longo de sua história, a humanidade sempre encontrou motivos para caracterizar cada época de seu desenvolvimento como “essencialmente diferente das demais” – pois o mais provável é que assim o fosse.
Cada sociedade – modernamente digamos: cada país – tem
uma face peculiar num dado momento do tempo. Isto é a base da refutação daquela
crítica segundo a qual “desde sempre o homem lamenta sua condição no mundo; não
há nada de novo em se apontar problemas no que quer que seja”. Ora, de fato, a
crítica dos arredores é natural à condição do homem de ser racional e desde os
primórdios de suas atividades intelectuais os homens se debruçam sobre o
problema dos males no mundo. Mas é preciso assinalar este outro fato: cada
momento na história – bem como cada geração em cada particular localidade –
apresenta problemas que não se confundem com aqueles gerais da época ou com os
que vieram antes, embora necessariamente relacionem-se a estes. Por isso não há
nada mais legítimo do que os representantes de cada geração, em cada sociedade
ou país, dedicarem-se à crítica de seus arredores mais imediatos, pois
certamente encontrarão aí algo de novo a que as críticas anteriores não se
podiam reportar.
Este texto tem duas premissas: 1) pensar o Brasil de
hoje consiste em identificar os particularíssimos problemas que caracterizam
nossa presente sociedade e a localizam dentro do momento histórico global; 2)
pensar qualquer sociedade consiste enormemente na análise de seus fatos
culturais: antes das instituições políticas e das leis, e seguindo o curso do
comportamento típico da sociedade – valores, crenças, opiniões – num dado
momento do tempo, tem-se, como um espelho deste, a cultura.
Qual o estado da cultura brasileira atual? O que salta
aos olhos quando nos fazemos essa pergunta é um fato impressionante: a ausência
cabal, no Brasil de hoje, daquilo que se chama alta cultura. Perceba o leitor
que a importância dessa
constatação reside em que nela se condensa aquilo que seria o nosso
“particularíssimo problema”. Poderíamos igualmente destacar entre nossos males
a desonestidade de nossa classe política ou a imoralidade que se vem tentando
oficializar legalmente, na esteira de vir ganhando cada vez maior circulação
entre o povo. No entanto, esses são problemas que se inserem numa grade de
tendências mais ou menos globais. Num país como os Estados Unidos, apesar de o governo
estar refém de um programa partidário tão pernicioso quanto o brasileiro, ainda
há a dita alta cultura. Mas entre nós… O que se passa?
Entenda-se por alta cultura todas aquelas obras da
criatividade humana em que o momento histórico no qual se inserem, bem como os
legados da humanidade como um todo, são traduzidos simbolicamente, atendendo a
critérios estéticos elaborados pela tradição dos gêneros artísticos; uma obra
de arte digna de nota deve remeter-se à tradição que a precede (sejam romances,
quadros, peças musicais), não necessariamente filiando-se a ela, mas de algum
modo respondendo a ela, ainda que para negá-la. Ora, a
principal característica da cultura brasileira atual é um profundo
desconhecimento das tradições artísticas, não digo nem do Ocidente, mas mesmo
do próprio Brasil, variando da ignorância total ao domínio capenga daqueles
critérios estéticos necessários à composição de qualquer obra que almeje um
diálogo ativo com os cânones.
Em verdade, associada à parca educação da classe
incumbida de produzir nossa alta cultura (a relação de distância quanto às
tradições artísticas redunda em falta de educação), verifica-se uma acachapante
falta de ambição da parte do artista brasileiro contemporâneo. Isto pode soar
contraditório, quando o que mais vemos por aí são homens e mulheres alardeando
seus talentos artísticos, seja em revistas culturais (que não são poucas entre
nós), em blogs, na televisão ou mesmo pelas ruas.
De fato, a julgar pelas aparências, um marciano que
ainda não dominasse em profundidade o conceito de alta cultura acreditaria ter
no Brasil um verdadeiro caldeirão cultural, páreo para uma Inglaterra
renascentista ou uma Rússia do século XIX. Mas a verdade é que por trás de tanto
barulho pouco de efetivamente relevante se salva. E, se assim o é, isto se pode
creditar em grande medida à falta de ambição do artista brasileiro: o que em
princípio é mera ignorância da tradição torna-se logo em programa de trabalho,
e imediatamente se têm manifestos exaltando a espontaneidade, a instantaneidade
e a falta de seriedade do que deviam ser obras de arte. Ou seja, o artista
brasileiro contemporâneo não almeja um diálogo com os cânones,
ao menos não enquanto continuador consciente deles, enquanto autor do que a
contemporaneidade legará de canônico ao futuro. Se se disser a um jovem poeta
brasileiro que ele escreve pior do que Camões, ele fará uma cara de espanto e
dirá “Mas é claro! É Camões!”, ou talvez nem se precise ir tão longe: peça-se ao
jovem poeta para competir com um Manuel Bandeira, com um Carlos Drummond, e ele
retribuirá com um olhar quase ofendido – ofendido em nome de seus intocáveis
predecessores, sobre os quais é sacrílego supor que possam ter nos dias de hoje
quem os desafie. E, no entanto, há outro modo de se produzir alta cultura?
Façamos, em tempo, a distinção fundamental entre cultura
e alta cultura. Evidentemente, esta está contida naquela. Venho tratando por
alta cultura tudo aquilo que, dentro do bojo comum das manifestações da
personalidade de um povo – a cultura –, destaca-se pelo refinamento de sua
composição e por não ser apenas reflexo do momento cultural, mas que
traga em sua estrutura algo de autoconsciência e autocrítica. É essa
característica autoconsciente que permite a alguns artistas transcenderem seu
momento sociocultural, sendo capazes, entre outras coisas, de parodiá-lo, mesmo
estando inseridos nele. Tal capacidade de distanciamento só é possível quando
já se empreendeu um verdadeiro estudo do objeto o qual se deseja retratar; do
contrário, no caso desse objeto corresponder à realidade circundante, o máximo
que se consegue é determinar-se por ele.
O que ocorre no Brasil de nossos dias é justamente a redução da arte ao espontâneo impensado, ou, em outras palavras: há uma contaminação da alta cultura pela cultura, não sendo demasiado identificar mesmo uma total substituição daquela por esta. Um exemplo notório disso é serem tomadas por poesia as letras de canções populares que, como insistia fervorosamente Bruno Tolentino, podem ter muito de poético, mas estão um tanto aquém do poema propriamente dito. Acontece que a poesia hoje foi reduzida ao status de texto de teor confessional, onde se dá arbitrariamente uma disposição vertical a linhas de prosa quebradas, texto esse que, musicado ou não, não apresenta qualquer particularidade em relação à letra de música. Já a musicalidade própria da poesia, obtida nos metros ritmados e de jogos de rima, é considerada um belo arcaísmo, coisa difícil demais de se fazer, pois demanda estudo, treino e, evidentemente, tempo – o que vai contra as regras da espontaneidade desleixada do poeta contemporâneo.
O que ocorre no Brasil de nossos dias é justamente a redução da arte ao espontâneo impensado, ou, em outras palavras: há uma contaminação da alta cultura pela cultura, não sendo demasiado identificar mesmo uma total substituição daquela por esta. Um exemplo notório disso é serem tomadas por poesia as letras de canções populares que, como insistia fervorosamente Bruno Tolentino, podem ter muito de poético, mas estão um tanto aquém do poema propriamente dito. Acontece que a poesia hoje foi reduzida ao status de texto de teor confessional, onde se dá arbitrariamente uma disposição vertical a linhas de prosa quebradas, texto esse que, musicado ou não, não apresenta qualquer particularidade em relação à letra de música. Já a musicalidade própria da poesia, obtida nos metros ritmados e de jogos de rima, é considerada um belo arcaísmo, coisa difícil demais de se fazer, pois demanda estudo, treino e, evidentemente, tempo – o que vai contra as regras da espontaneidade desleixada do poeta contemporâneo.
A literatura é, por excelência, o veículo onde se
cristalizam as características de uma sociedade num dado momento. Em seus melhores
exemplares, ela não é um mero espelho, mas, como dito anteriormente, apresenta
uma visão crítica da realidade que nela se reproduz, o que implica dizer que a
boa literatura ajuda a compor a realidade, modificando-a. Daí seu
papel crucial para o desenvolvimento das sociedades, pois sintetiza e avalia
seus valores e dá ao povo um auto-retrato que nunca deixa de influenciar a
psique coletiva.
Cabe-nos então olhar para a arte brasileira
contemporânea, dando especial atenção à literatura e perguntando a partir dela:
quem somos nós? Porém, eis o dilema: no Brasil deste início de século XXI não
há uma literatura que nos represente, que dê conta de nos mostrar enquanto
totalidade de um povo, expondo nossas contradições e assinalando nossos pontos
fortes, de modo que nela o brasileiro tenha a condensação de sua essência.
Nossa prosa recente, que sai dos blogs para os livros
impressos sem perdas ou ganhos, é presa de um subjetivismo inócuo, focalizando
protagonistas sem raízes, de todo indiferentes ao fato de pertencerem a
circunstâncias maiores que seus umbigos. Quando olhamos para a grande
literatura universal – digamos, os gênios russos do século XIX –, vemos, pelo
contrário, um esforço incansável da parte dos autores para situar suas
personagens no momento histórico, sem com isso comprometer a análise
psicológica e a descrição de ambientes imediatos. Mas o jovem ficcionista
brasileiro parece recusar-se a tal esforço intelectual e imaginativo; prefere
seguir o jorro de uma escrita automática, disfarçada de pós-modernismo
combativo, sendo que, até este momento, tudo que tem logrado combater é aquela
dama agonizante chamada Literatura Brasileira, que há pelo menos duas gerações
não dá o ar da graça pelas bandas daqui.[1]
E, no entanto, raras vezes se viu ausência tão
eloquente, capaz, ironicamente, de dizer mais sobre o que somos hoje do que a
ficção que tantos escrevem sem obter resultados. Somos, pois, isso: uma
sociedade sem autoconsciência, sem superego e totalmente entregue à preguiça
dos automatismos do momento.
Nota:
[1] Não há quaisquer exceções? Há, sim; pouquíssimas e
notadamente frutos de esforços isolados, que conseguem despontar à
revelia do meio cultural geral. Mas, para os fins deste texto, é
melhor não alentar o leitor com as exceções: ganhamos mais mantendo o cenho
fechado e as esperanças em suspenso, pois em estado de alerta trabalha-se mais
e melhor.
Lorena Miranda,
graduada em Letras, é mestranda do Departamento de Literatura e Cultura Russa
da USP.
Publicado no site da revista Vila Nova.
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